Defeito septal atrioventricular

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1. Introdução

De todas as malformações congênitas do coração, aquela mais sujeita a confusões, seja pela embriologia especulativa ou por falsas comparações com estruturas cardíacas normais, é o defeito septal atrioventricular. Neste defeito há completa ausência das estruturas atrioventriculares normais. A anatomia anormal resultante, tanto das valvas atrioventriculares quanto da massa ventricular, não pode ser descrita adequadamente com termos tais como "fenda da valva mitral" ou "defeito tipo ostium primum". O defeito poderá ser melhor entendido após apreciada a embriologia e a anatomia das estruturas septais atriventriculares e as conseqüências de sua ausência.


2. Embriologia

No tubo cardíaco primitivo do embrião, a aurícula única se comunica com o ventrículo único através do canal atrioventricular (ostium atrium ventriculare).

No canal atrioventricular formam-se dois espessamentos endocárdicos (coxins) ventral e dorsal, que se fundem e separam os orifícios valvares tricúspide e mitral.

Para que os septos auriculares e ventriculares se fechem e os folhetos septais das valvas tricúspide e mitral se formem é necessário que o desenvolvimento e fusão dos coxins sejam normais.

Cada coxim possui dois tubérculos, direito e esquerdo, e o fechamento do septo auricular assim como a formação do folheto septal da mitral dependem da fusão dos tubérculos esquerdos; do mesmo modo, o fechamento da porção membranosa do septo ventricular e a formação do folheto septal da tricúspide dependem da fusão dos tubérculos direitos.

Fundamentalmente, existem três tipos anatômicos de malformações dos coxins endocárdicos do canal atrioventricular:

- Ausência ou desenvolvimento incompleto dos coxins, formando-se uma valva única comunicando as átrios com os ventrículos e estando abertos os septos atriais e ventricular (ostium atrium ventriculare comune);

- Falta da fusão dos tubérculos esquerdos dos coxins, havendo defeito do septo atrial (ostium primum persistente) e folheto septal da mitral bífido (ostium partialis sinistrum);

- Falta da fusão dos tubérculos direitos dos coxins, havendo defeito da porção membranosa do septo ventricular e folheto septal da tricúspide bífido (ostium partialis dextrum).


3. Formas de apresentação

Os defeitos septais atrioventriculares incluem um amplo espectro de malformações cardíacas caracterizado por vários níveis de desenvolvimento incompleto da porção inferior do septo atrial, da via de entrada do septo ventricular e das valvas atrioventriculares. Esses defeitos podem ser subdivididos em formas parciais, completas e intermediárias.

Forma parcial

Na forma parcial do defeito septal A-V, uma comunicação inter-atrial tipo ostium primum logo acima do plano valvar A-V está usualmente presente. As valvas A-V são separadas e ligadas à crista do septo inter-ventricular. Classicamente existe uma fenda na metade do folheto anterior da valva mitral, originando uma estrutura com três folhetos: folhetos lateral esquerdo, esquerdo superior e esquerdo inferior. As comissuras são descritas como ocupando as posições ântero-lateral, póstero-lateral e septal, esta última correspondendo à assim chamada fenda mitral. A valva tricúspide também tem três folhetos, designados direito superior, lateral direito e direito inferior. Normalmente não há comunicação interventricular.

Forma completa

Na forma completa do defeito septal A-V existe apenas uma valva A-V que é comum às câmaras direita e esquerda. O aspecto central deste orifício é normalmente contíguo a uma comunicação interatrial tipo ostium primum acima e a uma comunicação interventricular abaixo. A valva A-V comum tem seis folhetos: esquerdo superior e inferior, laterais esquerdo e direito e direito superior e inferior. Em 1966, Rastelli classificou os defeitos septais A-V completos em três tipos: A, B e C, de acordo com a inserção do folheto superior esquerdo e a anatomia das cordas tendíneas. No tipo A de Rastelli o folheto superior esquerdo está totalmente sobre o ventrículo esquerdo e, juntamente ao folheto superior direito, está conectado à crista do septo interventricular por cordas tendíneas. No tipo C de Rastelli existe um deslocamento do folheto superior esquerdo para a direita, que cobre parcialmente o ventrículo direito sobre o septo interventricular sem fixar-se a este através de cordas tendíneas.

Forma intermediária

A forma intermediária do defeito septal A-V varia entre as formas parcial e completa. Esses corações possuem uma comunicação interatrial tipo ostium primum e uma comunicação fibrosa entre os folhetos superior e inferior através do septo interventricular que não é suficiente para permitir que as valvas mitral e tricúspide sejam definidas como entidades separadas.


4. Diagnóstico

As manifestações clínicas do defeito septal A-V dependem da magnitude e da direção do shunt, que é determinado pelo tamanho do defeito interatrial e/ou interventricular, pelo grau de insuficiência da valva A-V e pelas pré e pós-cargas relativas de cada ventrículo.

Pacientes com pequeno ou moderado shunt esquerdo-direito, calculado pela razão de fluxo pulmonar/sistêmico (Qp/Qs) menor que três, são freqüentemente assintomáticos. Caso contrário, ocorre fadiga, dispnéia e insuficiência cardíaca congestiva. Esses pacientes poderão desenvolver cianose com o aumento da resistência vascular pulmonar e inversão do shunt da direita para a esquerda.

As manifestações clínicas, dados de exame físico, radiográficos e hemodinâmicos são semelhantes às apresentações de pacientes com CIA ou CIV isoladas. O eletrocardiograma pode ser útil no diagnóstico, já que em 90% dos pacientes há um desvio do eixo cardíaco no sentido anti-horário, com o primeiro vetor direcionado inferiormente e para a direita.

O diagnóstico definitivo é dados pelo ecocardiograma e pela angiografia. A incidência ântero-posterior do ventriculograma define a imagem característica de "pescoço de cisne" resultante do estreitamento e alongamento da via de saída ventricular.


5. Indicação cirúrgica

5.1. Forma parcial

Poucos pacientes com a forma parcial do defeito septal A-V têm insuficiência mitral severa e sintomas de insuficiência cardíaca congestiva com retardo no crescimento na primeira década de vida.

Doença vascular pulmonar é incomum nesta malformação.

A maioria dos pacientes apresenta insuficiência mitral leve à moderada e apresenta sintomas graves mais precocemente do que aqueles com CIA tipo ostium secundum puro. Insuficiência cardíaca ocorre em 20% dos pacientes mas pode não manifestar-se até a quarta década de vida.

A cirurgia eletiva é aconselhada para a maioria dos pacientes na idade pré-escolar, a não ser que sintomas de insuficiência cardíaca e retardo no crescimento ocorram primeiro, quando a cirurgia estará indicada.

Para o pequeno número de pacientes com insuficiência mitral grave, a cirurgia deve ser retardada até o aparecimento de sintomas significativos de insuficiência cardíaca, já que haverá necessidade de troca valvar mitral, que deve ser o mais tardio possível nas crianças para evitar as complicações de próteses valvares nas crianças.

Resultados e complicações cirúrgicas

A mortalidade hospitalar dos pacientes submetidos à correção cirúrgica eletiva é inferior a 6% e se deve sobretudo à síndrome de baixo débito cardíaco. Os pacientes que requerem ser operados mais precocemente e com maior área cardíaca tem maior risco, da mesma forma que pacientes que apresentam insuficiência mitral severa e necessidade de troca valvar mitral. A concomitância de outras anormalidades cardíacas (Tetralogia de Fallot, dupla via de saída de VD) aumenta a mortalidade operatória.

O bloqueio atrioventricular pós-operatório complica a cirurgia de correção do defeito septal A-V em menos de 1% dos casos. Arritmias atriais são mais freqüentes, podendo ocorrer em até 22% dos pacientes, inclusive no pós-operatório tardio.

Noventa e quatro por cento dos pacientes estão vivos após 20 anos de pós-operatório, a maior parte dos quais, assintomático. Apenas 5% dos pacientes requerem reoperação tardia para troca valvar mitral.

5.2. Forma completa

Sessenta e cinco por cento dos pacientes com a forma completa do defeito septal A-V morrem antes do primeiro ano de vida sem correção cirúrgica. Oitenta e cinco por cento falecem até o segundo ano de vida e 96% não sobrevivem mais de cinco anos sem o tratamento cirúrgico. Além disso, o comprometimento vascular pulmonar inicia-se no primeiro ano de vida e freqüentemente já está instalado após o segundo ano de vida, de forma semelhante ao que ocorre com os pacientes portadores de comunicação interventricular. Desta forma, há um consenso de que esses pacientes devam ser submetidos à cirurgia durante o primeiro ano de vida para alterar a progressão natural da doença pulmonar.

O aumento da resistência arteriolar pulmonar superior a 10 unidades/m2 contraindica a cirurgia.

A síndrome de Down ocorre em 25% dos pacientes com a forma completa do defeito septal A-V.

A utilização da bandagem de artéria pulmonar para pacientes de baixo peso com intuito de proteção arteriolar pulmonar e melhorar os sintomas de insuficiência cardíaca para futura correção do defeito septal A-V tem indicação controversa, já que parece ser ineficaz e acarreta elevado risco operatório.

Resultados e complicações cirúrgicas

A mortalidade intra-hospitalar para correção cirúrgica da forma completa está em torno de 24% dos pacientes operados com idade inferior a um ano. Os fatores que aumentam o risco de mortalidade operatória incluem cirurgia precoce e, em pacientes de baixo peso, gravidade da insuficiência da valva A-V, classe funcional alta, presença de orifício A-V acessório.

Um por cento dos pacientes operados apresentam bloqueio A-V. Noventa e um por cento dos pacientes que sobrevivem à cirurgia estão vivos após 5 anos e assintomáticos.